31 de dezembro de 2010

Diamantes de Sangue



            Ontem eu revi, talvez pela segunda ou terceira vez, o filme "Diamante de Sangue" (Blood Diamond, 2006). Apesar de já conhecer o enredo, o desdobramento das cenas e as falas das personagens, ainda assim, algo no filme me chocou. Na verdade, muitas coisas me chocam quando o assunto é o continente Africano. No entanto, não quero falar aqui de minha sensibilidade, muito menos da maneira pela qual eu me deixo afetar (ou ser afetado) pela vida na África etc. No caso do filme em questão, trata-se de uma obra ficcional, mas que foi construída a partir de fatos verídicos: a guerra civil, as minas de diamantes, o RUF (Frente Unida Revolucionária), o tráfico de armas e drogas, as crianças soldados em Serra Leoa etc. É interessante quando o cinema comercial, para além de suas questões mercadológicas, consegue produzir obras nas quais questões relacionadas à nossa sociedade possam ser debatidas. Não sei se o filme conseguiu produzir debates sobre algumas das questões de Serra Leoa, nem sei se este era um dos objetivos dos produtores da obra. Entretanto, existe um detalhe que me chamou a atenção no filme: num determinado momento da narrativa o personagem de Djimon Hounsou (o simples pescador Solomon Vandy) pergunta para a jornalista Maddy Bowen (Jennifer Connelly) se o povo desta – referindo-se aos Estados Unidos – ao ler a reportagem enviariam ajuda a população de Serra Leoa. A jornalista responde negativamente, pois muito pouco ou quase nada produzirá na opinião pública estadunidense ou mundial sua reportagem – ou, talvez, milhares de reportagens como aquela. No filme “Hotel Ruanda” (Hotel Rwanda, 2004) há uma passagem parecida com esta descrita acima: o gerente do “hotel Mille” -Paul Rusesabagina (Don Cheadle) - pergunta ao jornalista se quando a reportagem passar na TV dos Estados Unidos, este país enviará ajuda. A resposta do jornalista é muita próxima da que foi dada no filme “Diamante de Sangue”. O continente africano é, sem sombra de dúvidas, uma das regiões belas e rica em recursos naturais do planeta. Porém, como disse Eduardo Galeano (“As veias abertas da América Latina”) referindo-se ao continente Americano, a pobreza do seu povo como resultado da riqueza de seu solo. Na África, como na América Latina, a violência do poder mercadológico que se perpetua nestas regiões produz cidades e regiões como verdadeiros campos de concentração daqueles que foram/são transformados em “refugo humano”. O sociólogo Zygmunt Bauman usa este termo no livro “Vidas desperdiçadas” para se referir aos seres humanos que se tornaram irrelevantes ao funcionamento do sistema. Trata-se de pessoas refugadas, ou simplesmente, lixo humano descartável. Os negros pobres de Serra Leoa, os índios das Américas, os pobres do Brasil etc. são como vidas descartáveis - vidas que perderam sua humanidade, ou seja, que não valem nada. Suas vozes nascidas do suplício diário de cada dia e da revolta por uma vida de sofrimentos é silenciada. Seus corpos fracos trazem as marcas de uma vida de misérias, mas também não são vistos. Suas histórias de vida não entram nas linhas da história oficial. No máximo, entram nas páginas da polícia local. Sobreviventes atrevidos de um modo de vida que se sustenta de pernas pro ar, os humanos que viraram refugo insistem em permanecerem vivos e perpetuando suas tradições, alimentando suas esperanças, criando seus filhos e filhas. Não é de se estranhar que quase ninguém venha a se importar com as vidas descartáveis. Eles simplesmente, para o bem da consciência e do sono do planeta, já nasceram mortos. Eu me pergunto se produzir um filme baseado no drama que milhões de africanos vivem diariamente é uma maneira inteligente de dar visibilidade a estes ou, pelo contrário, é apenas mais uma forma que o sistema descobriu de ganhar dinheiro vendendo, através das lentes do cinema, a miséria e a dor que ele mesmo pariu. Talvez, as duas coisas. Inúmeras questões entram em jogo quando o assunto é África ou cinema. Por fim, o que me chocou no filme não foi pensar que o cinema aproveita-se da dor dos africanos – isso faz parte do próprio funcionamento do sistema que vivemos. Não é uma novidade. O que sempre me faz parar para pensar é: como aceitamos as coisas como elas são de maneira tão naturalizada. É isso, entre outras coisas, que me choca. O povo de Serra Leoa sendo explorado, mutilado e assassinado enquanto nós sonhamos deslumbrados com os diamantes de sangue que iremos comprar e nos enfeitar. 




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